O POVO inicia hoje série de reportagens que
detalha como empresas abastecem comércio popular de vestuário em
Fortaleza com esquema de sonegação. Sefaz investigou 14 meses de atuação
do grupo e descobriu rombo fiscal de R$ 100 milhões
A sonegação fiscal cometida no
segmento têxtil local, principalmente a de fornecedores de matéria-prima
para o comércio popular de roupas e confecções em Fortaleza, há tempos é
algo certo e sabido. Um crime flagrante, em áreas como o Beco da Poeira
e a Rua José Avelino. Mas que, até então ocultava nomes, cifras, e
dimensões. Um levantamento minucioso do Setor de Inteligência da
Secretaria Estadual da Fazenda (Sefaz) desfiou o esquema, como opera e
se camufla e quem são os cabeças.
A
estrutura reúne num mesmo grupo pelo menos 16 empresas de fachada, que,
segundo a Sefaz, movimentou R$ 1,012 bilhão em apenas 14 meses e deve
pelo menos R$ 100 milhões ao fisco estadual. Os chefes, aponta o teor do
extenso relatório, são dois importantes negociadores de tecidos em
Fortaleza. Empresários formais, conhecidos no mercado local, eles teriam
bancado a rede fraudulenta. Os dois são agora investigados formalmente
pela Polícia Civil.
Três delegados foram designados para o
caso. O inquérito policial, aberto por ordem do Tribunal de Justiça, é
sigiloso e é o que dará validade judicial à apuração da Sefaz. Para não
atrapalhar as investigações, O POVO não divulga os nomes dos citados. A
lista inclui mais de 30 sócios laranjas, com patrimônio não condizente
ao que suas supostas fábricas de confecção movimentaram. Acredita-se
também em mais suspeitos por serviços prestados ao esquema. Inclusive
agentes públicos, possivelmente recrutados por propina.
Luxo e disfarce
Os
dois empresários apontados como chefes não aparecem em nenhum dos
quadros societários forjados. Nesse disfarce, montaram patrimônios
significativos, com carros importados luxuosos, moradias e muitos outros
bens que não estariam em suas rendas declaradas. O dinheiro seria
lavado em investimentos fora do País e no ramo do entretenimento.
A
investigação da Sefaz analisa o período entre novembro de 2013 e
janeiro de 2015. O bilhão de reais faturado pelo esquema é medido pelos
metros e quilos de tecidos que apareceram em rastro de notas fiscais
frias e na movimentação das falsas empresas - espalhadas por vários
bairros de Fortaleza.
Pela investigação, a fraude era
sustentada principalmente por liminares. Ao se virem acuados em
operações fazendárias, os sonegadores recorriam às esferas judiciais.
Alegavam à Justiça incapacidade de seguir a regra fiscal de pagar o
imposto no ato da compra, a chamada Substituição Tributária (ST).
O
tecido, que o mercado local comumente traz de fora - tanto da China
como de São Paulo, por exemplo - é taxado em 8% no Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Pagos na fonte ou ao
cruzarem a divisa cearense. Com seus advogados, os investigados pediam
ao juiz o benefício de só pagarem ao revenderem o produto.
Mas
aí também não o faziam. Se a Sefaz aumentasse o rigor, e já fosse
inevitável a paga, “desapareciam”. Como acontece no momento atual.
Praticamente todas 16 fábricas analisadas tinham o registro da firma
endereçado em imóveis alugados. Sabedoras do cerco fiscal e judicial
adotado no início de 2015, fecharam as portas. Procuradoria Geral do
Estado e Sefaz conseguiram derrubar liminares existentes nas 15 Varas da
Fazenda Pública Estadual.
“Essas empresas abasteciam a
(rua) José Avelino, o Beco da Poeira, o que tornava desleal a venda de
confecção no Ceará. Essas empresas não pagavam imposto nenhum, enquanto
você tinha outras empresas pagando tudo no seu ICMS”, afirmou o
secretário da Fazenda, Mauro Filho.
Saiba mais
Ameaças
Nos
dias 30 /1 e 2/2 deste ano três ligações feitas à central telefônica
da Sefaz teriam ameaçado Mauro Filho. “Diga ao secretário que ele já
entrou demais no setor”, conta ele, que associou o recado à
investigação fiscal e ao cerco jurídico feito contra o esquema de
sonegação.
COMO FUNCIONA O ESQUEMA DE FRAUDE
Empresas
que adquirem seus estoque de tecidos fora do Ceará são obrigadas a
pagar seus impostos pela Substituição Tributária (ST). O mecanismo
fiscal garante a cobrança já na fonte, e não apenas quando a mercadoria
for vendida por esse empresário. A arrecadação por ST é feita nos
postos fiscais nas divisas do Ceará.
Pela investigação,
foram criadas 16 empresas com mais de 30 sócios laranjas. Elas obtinham
liminares na Justiça, alegando que não poderiam pagar ao fisco por ST.
Prometiam pagar o tributo ao negociarem a mercadoria.
Resguardados
legalmente por liminares, essas empresas, segundo a Sefaz, enchiam
seus estoques para abastecer principalmente o comércio popular de
confecções em Fortaleza – como lojas da rua José Avelino e do entorno
da Catedral e boxes do Beco da Poeira. A sonegação fiscal do setor
têxtil atingiu proporções gigantescas no Estado.
As empresas
fraudadoras emitiam notas fiscais frias. Há informação de que alguns
corretores do setor ofereciam mercadorias nessas condições
ou até sem nota – dando descontos ao comprador pelo risco assumido.
Nas
autuações fiscais, ao tentar cobrar o ICMS, a Sefaz foi descobrindo o
elo desonesto entre as várias empresas. As firmas eram registradas em
imóveis alugados e “desapareciam” ao serem multadas – encerravam
subitamente as atividades.
Em vários dos casos analisados,
novas fábricas de confecção foram reabertas, com novos sócios, às vezes
até no mesmo endereço e mantendo o esquema fraudulento.
Os
“laranjas” não tinham como ser cobrados, muitos nem localizados. Alguns
chegaram a admitir à Sefaz que nem se sabiam empresários. Alguns sabiam
do esquema, mas não se preocupavam com os autos de infração. Quase
sempre não tinham bens para penhorar no débito fiscal.
Dois
grandes empresários do setor, donos de empresas formais e legalizadas,
são apontados como os cabeças desse esquema de sonegação. Seriam os
reais financiadores das 16 empresas suspeitas. Os nomes já constam na
investigação especial conduzida pela Polícia Civil.
O QUE É SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA (ST)
O
mecanismo fiscal permite a cobrança do Imposto sobre Circulação de
Mercadorias e Serviços (ICMS) logo na aquisição da mercadoria, e não
somente após a venda. Assegura a igualdade na concorrência comercial
entre as empresas de um mesmo setor. O ICMS no Ceará para operações
interestaduais é de 8% sobre o produto adquirido. A ST foi criada ainda
nos anos 1970, mas só foi regulamentada, por emenda constitucional, em
1993, quando passou a ser adotada por todas as unidades da federação.
Diversos segmentos (têxteis, material de construção, combustíveis,
bebidas, calçados, veículos...) adotam o ICMS/ST.
1,012 BILHÃO de
reais é o faturamento do esquema estimado pela Sefaz, correspondente
ao período analisado, calculado a partir da mercadoria adquirida e do
débito fiscal existente
5 BILHÕES de
reais é a estimativa de faturamento do esquema nos últimos cinco anos –
período legal permitido para a Sefaz realizar a cobrança fiscal
14 MESES foi o período investigado pelo Setor de Inteligência da Sefaz, que apurou informações de novembro de 2013 a janeiro de 2015
O POVO