De certa forma, a decisão da
Conmebol ao transferir a final da Copa Libertadores de Santiago para
Lima levou Flamengo e River Plate de volta ao lugar onde tudo começou. O
primeiro jogo da história do confronto aconteceu exatamente na capital
peruana, como parte da chamada “Gran Serie Suramericana Inter Clubs”,
interessante torneio hexagonal disputado na cidade no início de 1959, um
ano antes da disputa da edição inaugural da principal competição
sul-americana de clubes.
O torneio foi anunciado no fim de
dezembro de 1958, logo após o Natal, como parte de uma temporada de
jogos internacionais a ser realizada na virada do ano na capital
peruana. Ainda impressionados com as grandes exibições do Flamengo em
amistosos jogados em Lima no início daquele ano, os cartolas logo
confirmaram a participação rubro-negra no certame, que também contaria
com Peñarol, River Plate, Colo-Colo e a dupla local, Alianza e
Universitario.
O Flamengo era dirigido há quase seis
anos pelo paraguaio Manuel Fleitas Solich, nome lendário do clube, e
tinha vários remanescentes do time tricampeão carioca em 1953-54-55. Na
defesa, o vigoroso central Pavão, o quarto-zagueiro Jadir (que chegou a
jogar na Seleção de Vicente Feola) e o lateral Jordan. No meio, o jogo
clássico do capitão Dequinha e a malícia de Moacir. E na frente, a dupla
Henrique e Dida, dois dos maiores goleadores da história rubro-negra.
Naquele segundo semestre de 1958,
porém, a equipe havia perdido seus ponteiros campeões do mundo com a
seleção brasileira. O ponta-esquerda Zagallo, que quase foi para o
Palmeiras, acabou vendido ao Botafogo em agosto. E o ponta-direita Joel,
dono da posição há sete anos, migrara para o futebol espanhol,
negociado com o Valência bem no meio da disputa do Campeonato Carioca.
Com o versátil Luís Carlos na direita
e o miúdo (apenas 1,54 metro de altura) e driblador Babá na esquerda, o
time ainda disputava então a reta final do Carioca quando o convite
para o torneio em Lima foi feito. O certame do Rio de Janeiro, porém,
ainda se estenderia até 17 de janeiro graças a um incrível equilíbrio
entre seus principais postulantes ao título: ao fim dos pontos corridos
houve um empate triplo entre Flamengo, Vasco e Botafogo.
O Flamengo, é verdade, havia
terminado as 22 rodadas com o ataque mais positivo e a defesa menos
vazada. Mas nenhum critério de desempate – nem mesmo o goal average,
popular na época – seria utilizado para apontar o campeão naquelas
condições. E o campeonato seguiu para um triangular extra, que terminou
novamente empatado, com uma vitória para cada clube. Só no segundo
triangular, o “Supersupercampeonato”, o título foi decidido em favor do
Vasco.
O torneio começa
Essas etapas extras provocaram, além
do desgaste físico e mental dos jogadores, a necessidade de adiar a
entrada do Fla no hexagonal de Lima. O pedido foi aceito, e o time
embarcou no Galeão em 21 de janeiro, enquanto o torneio já rolava na
capital peruana. Com tabela remarcada, a estreia, que seria contra o
Universitario, passou a ser contra o fortíssimo Peñarol, campeão
uruguaio, e que no ano seguinte venceria a primeira edição da
Libertadores.
Os carboneros contavam com um timaço,
repleto de nomes históricos, como o goleiro Luis Maidana, os defensores
William Martínez e Néstor Gonçalves (capitão da equipe) e os atacantes
Luis Cubilla e Juan Eduardo Hohberg, além do meia brasileiro Salvador,
ex-Internacional. Mesmo assim, haviam perdido para o River Plate por 2 a
1 em sua estreia no hexagonal, que tinha até ali o Universitario como
líder, com duas vitórias em dois jogos.
A estreia do Flamengo, na
sexta-feira, dia 23, não foi muito feliz: ainda cansados da maratona do
Carioca, os rubro-negros fizeram um bom jogo, em especial com Moacir no
meio, mas o Peñarol abriu o placar na etapa final com Rubén Coccinello e
selou a vitória com Carlos Borges aos 44.
Para piorar, o volante
Dequinha, esteio do meio-campo do Fla, lesionou-se no começo do jogo,
sendo substituído pelo zagueiro Pavão, passando Milton Copolilo para o
meio.
Para a partida seguinte, agora sim
contra o Universitario, dois dias depois da estreia, Fleitas Solich fez
algumas mudanças no time, mantendo a alteração realizada durante o jogo
com o Peñarol e trazendo o camisa 10 rubro-negro Dida, refeito do
desgaste, de volta à equipe titular.
Os cremas, por sua vez, tinham o
reforço de um dos maiores jogadores do país na ocasião, o atacante
Roberto “Tito” Drago, cedido pelo Deportivo Municipal.
Porém, mais aclimatado e sem se
intimidar com a torcida da casa, o Flamengo matou o jogo logo no
primeiro tempo e venceu por 2 a 0, com gols de Milton Copolilo,
concluindo jogada de Moacir e Babá, e do próprio Dida, após passe de
Moacir. Embalado pela primeira vitória, o time carioca teria pela frente
o Colo-Colo, que vinha decepcionando (apanhara de 5 a 0 do Peñarol em
seu jogo anterior) e pretendia pelo menos recuperar sua imagem.
Desfalcado do goleiro Misael Escutti,
abalado com a goleada sofrida para o Peñarol, o Cacique teria, porém,
um reforço: a volta do meia Enrique Hormazábal, uma de suas referências
técnicas, além de contar também com o atacante Jorge (ou George)
Robledo, que havia atuado por muito tempo no futebol inglês defendendo o
Newcastle. O azar dos chilenos foi que os rubro-negros começaram
arrasadores: em 22 minutos de jogo, marcaram quatro vezes.
Luís Carlos abriu o placar, Moacir
ampliou e Babá anotou dois, antes de Hormazábal e Rodríguez descontarem
já no segundo tempo, quando o Flamengo baixara o ritmo.
A vitória,
aliada aos outros resultados, alçou os cariocas à liderança do torneio,
ao lado do Peñarol. Para melhorar, os jogadores teriam enfim alguns dias
de descanso, voltando a campo só seis dias depois, na noite de
terça-feira, 3 de fevereiro, para enfrentar o River Plate, em jogo
isolado.
A goleada sobre os millonarios
Dirigidos por um nome histórico do
futebol platino, José Maria Minella, o River Plate já vivia o segundo
ano do que seria seu maior jejum de todos os tempos (campeões em 1957,
só voltariam a levantar taças em 1975, 18 anos depois), mas ainda
reuniam um punhado generoso de ótimos jogadores, também remanescentes de
um tri, o nacional em 1955-56-57, com a equipe que entrou para a
história do clube como “La Maquinita”.
No time levado a campo, eram os casos
do zagueiro José Ramos Delgado (que mais tarde jogaria no Santos), do
lateral Federico Vairo, do meia Héctor De Bourgoing (que defendeu a
Albiceleste e migrou para a França, jogando o Mundial de 1966 pelos
Bleus), do centroavante Norberto Menéndez (goleador que mais tarde seria
ídolo também no rival Boca Juniors) e do ponta-esquerda Roberto Zárate,
outro nome histórico dos Millonarios.
A trajetória do River até ali, no
entanto, era oscilante: vencera a batalha do Prata contra o Peñarol na
estreia por 2 a 1, mas tropeçara nos peruanos, perdendo para o
Universitario pelo mesmo placar e empatando com o Alianza (1 a 1), antes
de voltar a triunfar com um 2 a 0 sobre o lanterna Colo-Colo. Uma
vitória sobre o Flamengo deixaria os portenhos dependendo só de um
tropeço dos carboneros diante dos cremas na última rodada para levantar a
taça.
Os rubro-negros, porém, tinham outros
planos.
O time entrou com a mesma escalação das duas vitórias
anteriores. Na defesa, o goleiro Fernando, os laterais Joubert e Jordan,
Pavão na zaga central, Jadir de quarto-zagueiro e Milton Copolilo de
volante. Na frente, a linha tinha Luís Carlos, Moacir (que mais tarde
jogaria no próprio River), Henrique, Dida e Babá. E após início
equilibrado, em que os argentinos chegaram a acertar a trave, aos poucos
o Flamengo foi se impondo.
Pouco antes do intervalo, os
comandados de Fleitas Solich balançaram as redes duas vezes – Luís
Carlos aos 42 e Henrique aos 44 – em rápidas escapadas pelas pontas e
chutes cruzados. Na etapa final, o River Plate ensaiou reação quando
“Beto” Menéndez descontou aos 16. Mas logo no reinício do jogo, Henrique
passou a Moacir, que lançou Babá. O ponta devolveu a Henrique para
bater e marcar o terceiro gol rubro-negro.
O triunfo já encaminhado
transformou-se em goleada aos 24 minutos, quando Babá aplicou um drible
desmoralizante em seu marcador e finalizou com um chute inapelável, sem
chance para o goleiro Manuel Ovejero. O placar de 4 a 1 decretou uma
“vitória justa, insofismável e sem apelação”, que consagrou o “domínio
técnico, tático e territorial” do Flamengo sobre o River Plate, segundo a
crônica do Jornal dos Sports.
O grande resultado também alçou enfim
o time rubro-negro à liderança isolada do hexagonal, com seis pontos
ganhos em quatro jogos, contra cinco do Peñarol e do próprio River (que
já encerrara sua participação) e quatro da dupla peruana Universitario e
Alianza, além do Colo Colo, lanterna com apenas dois pontos. Faltava
apenas a rodada decisiva, a ser disputada no dia 6 de fevereiro, uma
sexta-feira de Carnaval no Rio de Janeiro.
A virada épica na decisão
Peñarol e Universitario disputariam a
preliminar, enquanto o Flamengo – com o capitão Dequinha de volta, no
lugar de Milton Copolilo, mas agora desfalcado de Dida – encerraria o
torneio contra o Alianza, clube mais popular do Peru, no Estádio
Nacional de Lima. O empate (2 a 2) no primeiro jogo da noite levou
temporariamente o Peñarol aos mesmos seis pontos do Flamengo, que
passaria a precisar de pelo menos a igualdade diante dos blanquiazules.
Entretanto, empurrados por sua
torcida que lotou o estádio, os jogadores peruanos foram para cima e
abriram uma incrível vantagem: Victor “Pitín” Zegarra e Félix Castillo
marcaram na primeira etapa e o mesmo Zegarra ampliou aos 10 minutos do
segundo tempo, para delírio dos mais de 32 mil torcedores. Mas o Fla
empreenderia uma virada sensacional, comandada justamente pelo
substituto de Dida, o atacante Manoelzinho.
Um minuto depois do terceiro gol
peruano, ele recebeu de Babá e descontou. Dois minutos depois, escorou
de cabeça um escanteio e anotou o segundo. Aos 16, ele recebeu novamente
de Babá para empatar o jogo e silenciar o Estádio Nacional. E a virada
veio no minuto seguinte, quando o mesmo Manoelzinho soltou uma bomba que
o goleiro Bazán não conseguiu segurar e deu rebote para um chute forte e
de primeira de Henrique.
Em menos de dez minutos, o Flamengo
saiu de um 3 a 0 contra para uma vitória por 4 a 3 na casa do adversário
com estádio lotado. Ao apito final, a torcida limenha saiu do transe
hipnótico para aplaudir a formidável exibição dos cariocas no segundo
tempo. No meio do público estava o conceituado jornalista francês
Gabriel Hanot, que escreveu para o diário L’Équipe suas impressões a
respeito do hexagonal.
Sobre o Flamengo, Hanot comentou que
embora os rubro-negros não estreassem com o pé direito, “fartaram-se de
jogar com objetividade, animados por um estilo incontrolável”. Lembrou
que os jogadores se apresentaram “visivelmente cansados”, mas ressalvou:
“Bastou, no entanto, que se refizessem, para transporem as dificuldades
surgidas. É uma equipe possuidora de excepcional espírito de luta,
desconcertante na sua agilidade física e mental”.
O jornalista havia sido um dos
idealizadores da Copa dos Campeões europeia, torneio que logo ganharia
enfim seu correspondente sul-americano. No mês seguinte, num congresso
em Buenos Aires, a Conmebol anunciava para 1960 a criação da quase
homônima Copa dos Campeões da América. Cinco anos depois de instituída, a
competição seria rebatizada com o nome pela qual ficaria eternizada:
Copa Libertadores da América.
E após o triunfo rubro-negro em Lima,
Flamengo e River Plate voltariam a se enfrentar 16 vezes, sempre no Rio
de Janeiro ou em Buenos Aires, com um retrospecto bastante equilibrado:
seis vitórias para cada lado e quatro empates, numa conta que inclui
partidas amistosas, jogos válidos por torneios amistosos (como o
Octogonal de Verão de 1961, conquistado pelos cariocas) e pela
Libertadores, Supercopa e Copa Mercosul.
Fonte: Trivela