Agência Pública.
Fortunato da Silva parece viver em outro planeta. Quando vê a camisa da seleção brasileira, mostra-se indiferente. Para ele, é um “pano qualquer”. O desconhecimento sobre o manto mais famoso do futebol mundial justifica-se. O agricultor nunca teve energia elétrica em casa. Sem opção, mantém distância de tudo o que cerca a Copa do Mundo, o maior evento da Terra, prestes a ocorrer a 450 quilômetros dali, em Fortaleza.
A rotina de Fortunato, que vive em Serra da Estrela, comunidade localizada no município de Saboeiro, no sertão do Ceará, assemelha-se à de pelo menos 242 mil famílias brasileiras sem acesso à eletricidade (correspondentes a 960 mil pessoas, segundo o Ministério de Minas e Energia). Essa parcela da população, espalhada pelo país, dificilmente participará da Copa do Mundo mais cara da história, com custo oficial previsto em R$ 25,7 bilhões, segundo o Portal da Transparência.
Prazeres simples, como beber água gelada ou refrescar-se com a brisa de um ventilador, são desconhecidos para eles. “Na verdade, a gente se contentaria com muito menos, como ter condições de ligar uma bomba para puxar água da cisterna para a plantação”, sonha Fortunato, cearense de 45 anos. Sem desfrutar de energia elétrica, a saída é fazer a irrigação de forma manual, quebra-galho sem o mesmo resultado. É do plantio de milho, feijão e fava, cultivo comum a todos os agricultores da região, que sai o prato de cada dia.
Qualquer outro acompanhamento nem sempre disponível, como frango, peixe ou carne vermelha, precisa ser todo consumido no mesmo dia, pois não há geladeira. “Se a gente mata um carneiro, tem que chamar os vizinhos para comer junto, senão estraga”, explica Fortunato. A solução, para alguns, é salgar a carne e lavá-la antes do consumo. Isso não impede que o cheiro forte nas casas atraia toda sorte de insetos.
A família de Fortunato é uma das onze de Serra da Estrela, a cerca de 35 quilômetros da sede de Saboeiro. Para chegar à comunidade, é necessário percorrer 10 quilômetros de estrada carroçável. Os seis últimos quilômetros são uma subida íngreme, com acesso somente de moto. E, ainda assim, se não estiver chovendo forte. “Nossa vida já foi muito pior. Imagine quando não havia moto: subir com carga, só no lombo de jumento”, descreve Fortunato.
A renda certa é questão de sobrevivência onde não há emprego além da agricultura de subsistência. “Sem esse dinheiro, enfrentar as dificuldades de se viver sem energia elétrica seria ainda mais difícil”, expõe Fortunato. Outro programa federal, o Luz para Todos, nutriu a esperança de que o benefício mais sonhado também chegaria a suas casas. Mas, até aqui, tudo não passou de um desejo frustrado.
Parte da política governamental de oferecer melhores condições de vida a populações isoladas, o Luz para Todos levou torres de transmissão de energia a rincões de norte a sul do país. Uma dessas linhas passa literalmente sobre os moradores de Serra da Estrela. Instalada em 2006, ela transporta energia entre os municípios de Jucás e Catarina. Porém, não foi possível iluminar a comunidade de Saboeiro.
“A energia passa em cima das nossas casas, mas não pode chegar às nossas casas. Quando instalaram as torres, explicaram que a alta tensão impedia que um ramal descesse para cá”, relata o agricultor Valdir de Oliveira, de 48 anos. Por ironia, a luz passa tão perto e, ao mesmo tempo, está tão longe. “Já pedimos muitas vezes energia para a Coelce [Companhia Energética do Ceará], mas a desculpa é sempre a mesma.”
Desde seu surgimento, o programa garantiu energia elétrica a 3,1 milhões de famílias, num total de 15,1 milhões de pessoas, segundo o Ministério de Minas e Energia. Passados 11 anos, contudo, o acesso ao serviço ainda não foi universalizado. Até 2000, 10,8% da população do Ceará não tinha eletricidade, aponta o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece). Hoje, o número está reduzido a menos de 80 mil pessoas, que vivem em comunidades isoladas como as de Saboeiro.
SAIBA MAIS:
10 maiores proporções de famílias com energia elétrica no Ceará, em 2010: Fortaleza (99,70%), Baixio (99,65%), São Benedito (99,63%), Brejo Santo (99,55%), Groaíras (99,53%), Iguatu (99,53%), Guaraciaba do Norte (99,53%), Jaguaribe (99,53%), Barreira (99,51%) e Horizonte (99,51%).
10 menores proporções de famílias com energia elétrica no Ceará, em 2010: Choró (95,97%), Irauçuba (95,89%), Acaraú (95,75%), Itarema (95,59%), Salitre (95,42%), Amontada (94,96%), Aiuaba (94,86%), Catarina (94%), Granja (92,77%) e Saboeiro (91,10%). Fonte: IBGE/Ipece.
Poucos municípios como esse sofrem tanto com o problema. Ao todo, existem lá sete comunidades sem energia elétrica, incluindo ainda Passo Fundo, Ninador, Queimadas, Logrador, Paraná e Serra do Papagaio. “Em pleno século 21, isso não podia acontecer. Esse é um serviço básico para a sobrevivência humana”, opina Francisco Bezerra, agente administrativo da Secretaria de Agricultura de Saboeiro.
O cenário já foi pior. Antes do surgimento do Luz para Todos, quase a metade da população de Saboeiro não desfrutava de energia elétrica. Como explica o gestor, cabe à prefeitura fazer o levantamento das comunidades sem o serviço e encaminhá-lo à Coelce, que realiza um estudo topográfico da região. Dependendo da verba fornecida pelo programa, a solicitação é atendida de imediato ou futuramente.
Em 11 anos, já foram investidos R$ 16 bilhões no Luz para Todos. A meta do governo federal é universalizar o fornecimento de energia elétrica no Brasil. Para isso, após a conclusão da 3ª etapa do programa, em dezembro deste ano, será feito um novo estudo para descobrir quem ainda ficou de fora.
Cansados de esperar, alguns cidadãos vão dando seu próprio jeitinho, algo comum aos brasileiros. Francimar de Oliveira conheceu a energia elétrica numa de suas viagens a São Paulo, onde trabalhou em algumas temporadas na construção civil. Desde 2007, ele não arredou mais o pé de Serra da Estrela, graças ao Bolsa Família. Com suas economias, o agricultor investiu numa tecnologia que a filha ouvira falar na escola. Por R$ 2 mil, o cearense instalou duas placas de energia solar no telhado, em janeiro.
O sistema funciona na base do improviso. A energia passa por fios pela parede e alimenta uma bateria de caminhão. A carga acumulada liga a TV, que a família possuía em casa já havia dois anos, para o dia em que chegassem os postes por tanto tempo esperados. “A gente ainda não tem uma geladeira para realizar o sonho de beber água gelada, mas já dá pra ter um contato com o resto do mundo”, festeja Francimar.
“O dinheiro que gastei é muito para gente pobre como eu, mas não é nada para um governo. Colocar placas dessas aqui na comunidade sairia mais barato do que trazer postes até aqui em cima”, compara o agricultor. Diferentemente de Fortunato, ele sabe o que significa a camisa amarelinha. E poderá vê-la em sua casa pela primeira vez numa Copa do Mundo. Graças à sua própria iniciativa.
O dia 20 de dezembro de 2011 não sai da memória dos moradores. As 35 famílias das duas comunidades do sertão do Ceará, todas com algum grau de parentesco, sempre mantiveram a esperança de que suas noites fossem iluminadas. Os postes vieram do alto, por meio de helicóptero. Só assim foi possível para a Companhia Energética do Ceará (Coelce) executar o projeto de eletrificação do local.
Sem acesso por meio de carro, caminhão ou moto, as comunidades viveram praticamente esquecidas até o século 21. O Bolsa Família e a chegada da energia elétrica ajudaram a frear o êxodo local. Os moradores passaram a contar com uma renda mensal, que complementa o plantio da agricultura de subsistência, e a desfrutar dos prazeres da tecnologia.
“A vida aqui melhorou muito. No meu tempo, eu trabalhava um dia inteiro para conseguir uma xícara de açúcar para a garapa deles [água com açúcar, bebida comum entre os pobres do interior do Nordeste]. Hoje, um dia de trabalho rende um saco de açúcar para o leite dos filhos deles”, compara o agricultor Dionísio de Oliveira, de 48 anos, um dos moradores que receberam da Coelce um aparelho de TV.
Não que o acesso a bens de consumo tenha resolvido todos os problemas. A distância de tudo ainda é um empecilho. A escola municipal de Cafundó atende dez crianças no ensino fundamental 1. Os mais crescidos, do fundamental 2, acordam às 3h30 para uma caminhada de duas horas morro abaixo até o distrito mais próximo, Conceição. Já os alunos de ensino médio viajam mais 30 quilômetros de ônibus até a sede de Choró.
Apesar do físico mirrado comum aos demais moradores, Teté, como é conhecido, era sempre requisitado para fazer força. Quando alguém fica doente, os familiares ou amigos precisam descê-lo carregado em redes de dormir. “Uma vez, após uma briga, um homem furou outro (esfaqueou). No desespero, desci a serra em 10 minutos para chamar uma ambulância, enquanto levavam ele carregado”, relembra.
SAIBA MAIS:
Custo da obra de eletrificação de Cafundó e Escondido: R$ 797 mil, o equivalente a R$ 22 mil para cada uma das 35 famílias das comunidades. Fonte: Coelce.
Na base da serra, há uma placa já desgastada que informa o projeto de eletrificação. A obra custou R$ 797 mil ao programa Luz para Todos. Para que pudessem ser carregados por helicóptero, os postes foram fabricados em fibra de vidro. Não há iluminação pública, e, por isso, os clientes, todos de baixa renda, pagam em média R$ 5 por mês. A medição é feita por um dos moradores, que também cuida da escola.
A chegada da energia elétrica garantiu outra benesse dos novos tempos. O uso de telefones celulares, que em certas regiões das comunidades captam sinal da TIM e da Claro – serra abaixo, também é possível telefonar com chip da Oi. O município ainda não dispõe de tecnologia 3G, mas sim a antiga 2G. Quando se está navegando na internet, uma chamada para o telefone derruba a conexão.
“A primeira Copa do Mundo que vi foi em 2010. Desci até a comunidade
de Fonte Nova. Foram duas horas de ida e mais duas de volta”, relata o
agricultor Geane de Oliveira, de 26 anos. “Foi tanto sacrifício que
aquele jogo da seleção brasileira foi o único que assisti.” Ninguém
merece mesmo. Nem as famílias de Cafundó e Escondido, nem as 242 mil
ainda sem energia elétrica no Brasil.
Rafael Luis Azevedo, da Fortunato da Silva parece viver em outro planeta. Quando vê a camisa da seleção brasileira, mostra-se indiferente. Para ele, é um “pano qualquer”. O desconhecimento sobre o manto mais famoso do futebol mundial justifica-se. O agricultor nunca teve energia elétrica em casa. Sem opção, mantém distância de tudo o que cerca a Copa do Mundo, o maior evento da Terra, prestes a ocorrer a 450 quilômetros dali, em Fortaleza.
A rotina de Fortunato, que vive em Serra da Estrela, comunidade localizada no município de Saboeiro, no sertão do Ceará, assemelha-se à de pelo menos 242 mil famílias brasileiras sem acesso à eletricidade (correspondentes a 960 mil pessoas, segundo o Ministério de Minas e Energia). Essa parcela da população, espalhada pelo país, dificilmente participará da Copa do Mundo mais cara da história, com custo oficial previsto em R$ 25,7 bilhões, segundo o Portal da Transparência.
Fortunato da Silva parece viver em outro planeta. Quando vê a camisa da seleção brasileira, mostra-se indiferente. Para ele, é um “pano qualquer”.Entrar em estádios será privilégio de poucos. Mas, para Fortunato e seus vizinhos, nem mesmo ver os jogos pela TV será possível. Dentre os 184 municípios do Ceará, Saboeiro é o que tem maior proporção de habitantes sem energia elétrica. Ao todo, 8,9% dos moradores da região não sabem o que é isso. É um índice alto, levando-se em conta que 1% da população do estado não possui o serviço.
Prazeres simples, como beber água gelada ou refrescar-se com a brisa de um ventilador, são desconhecidos para eles. “Na verdade, a gente se contentaria com muito menos, como ter condições de ligar uma bomba para puxar água da cisterna para a plantação”, sonha Fortunato, cearense de 45 anos. Sem desfrutar de energia elétrica, a saída é fazer a irrigação de forma manual, quebra-galho sem o mesmo resultado. É do plantio de milho, feijão e fava, cultivo comum a todos os agricultores da região, que sai o prato de cada dia.
Qualquer outro acompanhamento nem sempre disponível, como frango, peixe ou carne vermelha, precisa ser todo consumido no mesmo dia, pois não há geladeira. “Se a gente mata um carneiro, tem que chamar os vizinhos para comer junto, senão estraga”, explica Fortunato. A solução, para alguns, é salgar a carne e lavá-la antes do consumo. Isso não impede que o cheiro forte nas casas atraia toda sorte de insetos.
A família de Fortunato é uma das onze de Serra da Estrela, a cerca de 35 quilômetros da sede de Saboeiro. Para chegar à comunidade, é necessário percorrer 10 quilômetros de estrada carroçável. Os seis últimos quilômetros são uma subida íngreme, com acesso somente de moto. E, ainda assim, se não estiver chovendo forte. “Nossa vida já foi muito pior. Imagine quando não havia moto: subir com carga, só no lombo de jumento”, descreve Fortunato.
“Beber água gelada é luxo. A gente se contentaria com muito menos”.Além das motos, que se popularizaram na zona rural do Nordeste, outra novidade amenizou o sofrimento na comunidade: o Bolsa Família, instituído pelo governo Lula em 2003. Todas as famílias de Serra da Estrela recebem o benefício. No caso de Fortunato, são R$ 352 mensais, desde que mantenha na escola seus três filhos. Eles estudam no distrito de Barrinha e caminham os seis quilômetros serra abaixo para chegar ao colégio.
Fortunato da Silva, agricultor de Saboeiro.
A renda certa é questão de sobrevivência onde não há emprego além da agricultura de subsistência. “Sem esse dinheiro, enfrentar as dificuldades de se viver sem energia elétrica seria ainda mais difícil”, expõe Fortunato. Outro programa federal, o Luz para Todos, nutriu a esperança de que o benefício mais sonhado também chegaria a suas casas. Mas, até aqui, tudo não passou de um desejo frustrado.
Parte da política governamental de oferecer melhores condições de vida a populações isoladas, o Luz para Todos levou torres de transmissão de energia a rincões de norte a sul do país. Uma dessas linhas passa literalmente sobre os moradores de Serra da Estrela. Instalada em 2006, ela transporta energia entre os municípios de Jucás e Catarina. Porém, não foi possível iluminar a comunidade de Saboeiro.
“A energia passa em cima das nossas casas, mas não pode chegar às nossas casas. Quando instalaram as torres, explicaram que a alta tensão impedia que um ramal descesse para cá”, relata o agricultor Valdir de Oliveira, de 48 anos. Por ironia, a luz passa tão perto e, ao mesmo tempo, está tão longe. “Já pedimos muitas vezes energia para a Coelce [Companhia Energética do Ceará], mas a desculpa é sempre a mesma.”
“Se a gente mata um carneiro, tem que chamar os vizinhos para comer junto, senão estraga”. Fortunato da Silva, agricultor de Saboeiro.A Coelce opera o Luz para Todos no estado e, no fim de 2013, tinha como meta instalar energia elétrica em 30 pontos de Saboeiro durante 2014 – até março, sete obras foram finalizadas. Porém, os moradores de Serra da Estrela terão que usar por mais um tempo velas e lampiões a gás ou querosene durante a noite, pois a companhia não sabe onde fica a comunidade, nem tem registro de solicitação do serviço.
Desde seu surgimento, o programa garantiu energia elétrica a 3,1 milhões de famílias, num total de 15,1 milhões de pessoas, segundo o Ministério de Minas e Energia. Passados 11 anos, contudo, o acesso ao serviço ainda não foi universalizado. Até 2000, 10,8% da população do Ceará não tinha eletricidade, aponta o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece). Hoje, o número está reduzido a menos de 80 mil pessoas, que vivem em comunidades isoladas como as de Saboeiro.
SAIBA MAIS:
10 maiores proporções de famílias com energia elétrica no Ceará, em 2010: Fortaleza (99,70%), Baixio (99,65%), São Benedito (99,63%), Brejo Santo (99,55%), Groaíras (99,53%), Iguatu (99,53%), Guaraciaba do Norte (99,53%), Jaguaribe (99,53%), Barreira (99,51%) e Horizonte (99,51%).
10 menores proporções de famílias com energia elétrica no Ceará, em 2010: Choró (95,97%), Irauçuba (95,89%), Acaraú (95,75%), Itarema (95,59%), Salitre (95,42%), Amontada (94,96%), Aiuaba (94,86%), Catarina (94%), Granja (92,77%) e Saboeiro (91,10%). Fonte: IBGE/Ipece.
Poucos municípios como esse sofrem tanto com o problema. Ao todo, existem lá sete comunidades sem energia elétrica, incluindo ainda Passo Fundo, Ninador, Queimadas, Logrador, Paraná e Serra do Papagaio. “Em pleno século 21, isso não podia acontecer. Esse é um serviço básico para a sobrevivência humana”, opina Francisco Bezerra, agente administrativo da Secretaria de Agricultura de Saboeiro.
O cenário já foi pior. Antes do surgimento do Luz para Todos, quase a metade da população de Saboeiro não desfrutava de energia elétrica. Como explica o gestor, cabe à prefeitura fazer o levantamento das comunidades sem o serviço e encaminhá-lo à Coelce, que realiza um estudo topográfico da região. Dependendo da verba fornecida pelo programa, a solicitação é atendida de imediato ou futuramente.
“A energia passa em cima das nossas casas, mas não pode chegar às nossas casas”. Valdir de Oliveira, agricultor de Saboeiro.“O custo médio [para eletrificação] é relativo, pois deve-se, entre outras questões, conhecer a distância física entre o solicitante e o sistema elétrico da distribuidora”, pontua a assessoria de imprensa da Coelce. “Não é uma obra barata, é fato. Mas é um custo que impede outros gastos lá na frente. Afinal, como se combate o êxodo rural sem oferecer condições dignas de vida no campo?”, questiona Bezerra.
Em 11 anos, já foram investidos R$ 16 bilhões no Luz para Todos. A meta do governo federal é universalizar o fornecimento de energia elétrica no Brasil. Para isso, após a conclusão da 3ª etapa do programa, em dezembro deste ano, será feito um novo estudo para descobrir quem ainda ficou de fora.
Cansados de esperar, alguns cidadãos vão dando seu próprio jeitinho, algo comum aos brasileiros. Francimar de Oliveira conheceu a energia elétrica numa de suas viagens a São Paulo, onde trabalhou em algumas temporadas na construção civil. Desde 2007, ele não arredou mais o pé de Serra da Estrela, graças ao Bolsa Família. Com suas economias, o agricultor investiu numa tecnologia que a filha ouvira falar na escola. Por R$ 2 mil, o cearense instalou duas placas de energia solar no telhado, em janeiro.
O sistema funciona na base do improviso. A energia passa por fios pela parede e alimenta uma bateria de caminhão. A carga acumulada liga a TV, que a família possuía em casa já havia dois anos, para o dia em que chegassem os postes por tanto tempo esperados. “A gente ainda não tem uma geladeira para realizar o sonho de beber água gelada, mas já dá pra ter um contato com o resto do mundo”, festeja Francimar.
“Em pleno século 21, isso não podia acontecer. Energia elétrica é um serviço básico para a sobrevivência humana”. Francisco Bezerra, agente da prefeitura de Saboeiro.Torcedor do Fortaleza, sua casa era a única da região que podia assistir ao amistoso do Brasil contra a África do Sul, que ocorreu no dia 5 de março, em preparação para a Copa do Mundo. Na vizinhança, ainda sem saber da novidade pertinho de casa, quem mantém algum contato com futebol precisou se contentar com a narração via rádio de pilha. Francimar, a esposa e os três filhos tiveram o privilégio de ver além de ouvir.
“O dinheiro que gastei é muito para gente pobre como eu, mas não é nada para um governo. Colocar placas dessas aqui na comunidade sairia mais barato do que trazer postes até aqui em cima”, compara o agricultor. Diferentemente de Fortunato, ele sabe o que significa a camisa amarelinha. E poderá vê-la em sua casa pela primeira vez numa Copa do Mundo. Graças à sua própria iniciativa.
COPA DO MUNDO ATÉ EM CAFUNDÓ E ESCONDIDO
Duas comunidades de nomes curiosos vão assistir em 2014 a primeira Copa do Mundo pela TV: Cafundó e Escondido, em Choró, no sertão do Ceará.
Quem não esquece a primeira Copa do Mundo que viu? Para a maioria, é uma lembrança da infância. Graças ao programa Luz para Todos, em alguns rincões o torneio do Brasil será justamente o primeiro. Dois deles têm nomes bem curiosos: Cafundó e Escondido. Comunidades quilombolas de Choró, a 175 quilômetros de Fortaleza, elas receberam o serviço de energia elétrica há três anos, depois do último Mundial.O dia 20 de dezembro de 2011 não sai da memória dos moradores. As 35 famílias das duas comunidades do sertão do Ceará, todas com algum grau de parentesco, sempre mantiveram a esperança de que suas noites fossem iluminadas. Os postes vieram do alto, por meio de helicóptero. Só assim foi possível para a Companhia Energética do Ceará (Coelce) executar o projeto de eletrificação do local.
As famílias de Cafundó e Escondido sempre rezaram aos céus para que suas noites fossem iluminadas. Como num milagre, os postes vieram do alto, por meio de helicóptero.Cafundó e Escondido, como outras comunidades formadas por escravos fugidos, são duas das mais isoladas do país. Para chegar lá, é preciso percorrer 30 quilômetros desde a sede de Choró, sendo 10 quilômetros em estrada carroçável. Depois, é necessário subir uma serra de 680 metros de altitude, a pé, num terreno bastante acidentado. Dependendo do fôlego, essa caminhada morro acima dura de uma a duas horas.
Sem acesso por meio de carro, caminhão ou moto, as comunidades viveram praticamente esquecidas até o século 21. O Bolsa Família e a chegada da energia elétrica ajudaram a frear o êxodo local. Os moradores passaram a contar com uma renda mensal, que complementa o plantio da agricultura de subsistência, e a desfrutar dos prazeres da tecnologia.
“A vida aqui melhorou muito. No meu tempo, eu trabalhava um dia inteiro para conseguir uma xícara de açúcar para a garapa deles [água com açúcar, bebida comum entre os pobres do interior do Nordeste]. Hoje, um dia de trabalho rende um saco de açúcar para o leite dos filhos deles”, compara o agricultor Dionísio de Oliveira, de 48 anos, um dos moradores que receberam da Coelce um aparelho de TV.
Não que o acesso a bens de consumo tenha resolvido todos os problemas. A distância de tudo ainda é um empecilho. A escola municipal de Cafundó atende dez crianças no ensino fundamental 1. Os mais crescidos, do fundamental 2, acordam às 3h30 para uma caminhada de duas horas morro abaixo até o distrito mais próximo, Conceição. Já os alunos de ensino médio viajam mais 30 quilômetros de ônibus até a sede de Choró.
“No meu tempo, eu trabalhava um dia inteiro para conseguir uma xícara de açúcar para a garapa dos meus filhos. Hoje, um dia de trabalho rende um saco de açúcar para o leite dos filhos deles”. Dionísio de Oliveira, agricultor de Cafundó.“Não é à toa o nome. As pessoas vivem escondidas mesmo”, ri José Arimateia da Silva, de 37 anos. Nascido em Cafundó, o ex-agricultor desistiu da vida ao lado dos familiares em 2010. Vendeu a casa a um parente, por R$ 200, e alugou outra na sede de Choró, na época por R$ 70. “Cansei de subir e descer aquilo ali. É muito desgastante. Imagine então o sofrimento de crianças e idosos”, diz o vendedor de picolé.
Apesar do físico mirrado comum aos demais moradores, Teté, como é conhecido, era sempre requisitado para fazer força. Quando alguém fica doente, os familiares ou amigos precisam descê-lo carregado em redes de dormir. “Uma vez, após uma briga, um homem furou outro (esfaqueou). No desespero, desci a serra em 10 minutos para chamar uma ambulância, enquanto levavam ele carregado”, relembra.
SAIBA MAIS:
Custo da obra de eletrificação de Cafundó e Escondido: R$ 797 mil, o equivalente a R$ 22 mil para cada uma das 35 famílias das comunidades. Fonte: Coelce.
Na base da serra, há uma placa já desgastada que informa o projeto de eletrificação. A obra custou R$ 797 mil ao programa Luz para Todos. Para que pudessem ser carregados por helicóptero, os postes foram fabricados em fibra de vidro. Não há iluminação pública, e, por isso, os clientes, todos de baixa renda, pagam em média R$ 5 por mês. A medição é feita por um dos moradores, que também cuida da escola.
A chegada da energia elétrica garantiu outra benesse dos novos tempos. O uso de telefones celulares, que em certas regiões das comunidades captam sinal da TIM e da Claro – serra abaixo, também é possível telefonar com chip da Oi. O município ainda não dispõe de tecnologia 3G, mas sim a antiga 2G. Quando se está navegando na internet, uma chamada para o telefone derruba a conexão.
“Não é à toa o nome (Cafundó e Escondido). As pessoas vivem escondidas mesmo”. José Arimateia da Silva, nascido no Cafundó, hoje morador da sede de Choró.Apesar do horizonte aberto pela tecnologia, ainda existe gente sem contato com o exterior da comunidade. O agricultor Antônio Preto, de 74 anos, por exemplo, não faz ideia do que seja seleção brasileira. “Minha vida sempre foi de casa pra roça, da roça pra casa”, justifica. Hoje, porém, ele virou exceção. Quase todos os moradores possuem TV, e quem não tem pretende ver os jogos na casa de algum vizinho.
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