Enquanto se agita a ameaça de rejeitar as contas de Dilma, investigação
chega ao presidente do Tribunal, Aroldo Cedraz, e ressurgem suspeitas
sobre o relator Augusto Nardes
Marcelo Camargo / Agência Brasil
À frente de Dilma, Nardes (à direita) abraça Cedraz durante a posse do novo presidente do TCU, em dezembro passado
Feito inédito na história da República: nos últimos meses, o Tribunal de Contas da União caiu nas graças da oposição ao acenar para a rejeição das contas do governo federal em 2014 e cobrar diretamente de Dilma Rousseff explicações sobre as “pedaladas fiscais”. Não tardou, porém, para a imagem de moralidade e independência da Corte ser maculada por nova denúncia. Investigado na Operação Lava Jato, o empreiteiro Ricardo Pessoa, dono da UTC, afirmou pagar uma mesada de 50 mil reais ao filho do presidente do TCU,
Aroldo Cedraz, em troca de informações privilegiadas. Ainda segundo o
delator, o advogado Tiago Cedraz foi contratado por 1 milhão de reais
para atuar em um caso da Usina Angra 3, relacionado a uma licitação para
obras de 2 bilhões de reais.
Na origem do episódio, após uma queixa
registrada pelos concorrentes, a licitação chegou a ser suspensa por
decisão do ministro Raimundo Carreiro, relator do caso e atual
corregedor do TCU. Mas, em 2012, no julgamento do mérito, Carreiro votou
pela continuidade, embora a área técnica do tribunal recomendasse que a
pré-qualificação fosse anulada definitivamente por causa de
irregularidades.
Carreiro, ao negar ter recebido qualquer
vantagem ao analisar o caso, ingressou no Supremo Tribunal Federal com
pedido de acesso ao conteúdo da delação. Por meio de nota, o escritório
Cedraz Advogados também alega nunca ter patrocinado nenhum caso da UTC
junto ao Tribunal de Contas. “O escritório processará o Sr. Ricardo
Pessoa, civil e criminalmente, pelas mentiras lançadas no bojo da
delação.”
Não é a primeira vez que um ministro do
TCU é associado ao cartel das empreiteiras investigado pela Lava Jato.
Se o STF, com a caneta do ministro Luís Barroso, não tivesse aniquilado a
Operação Castelo de Areia, Augusto Nardes também seria alvo de
investigação específica por conta de uma ampla documentação apreendida
com executivos da Camargo Corrêa. Nos papéis, e-mails, anotações e
planilhas, o nome do ministro do TCU estava relacionado a propinas em
obras públicas. No relatório final da operação, o delegado Otavio
Margonari Russo, da Polícia Federal, anexou imagens de ao menos dois
documentos relacionados a Nardes, além de uma reportagem sobre sua
relação com o ex-diretor do Departamento Nacional de Infraestrutura de
Transportes, Luiz Antonio Pagot.
Em um dos casos, referente à obra da
Eclusa do Tucuruí, representada pela sigla ETUC, Russo afirma que o
manuscrito cita um “compromisso” de 500 mil reais com Pagot e com o PP, o
partido de Nardes, para em seguida copiar uma reportagem publicada
pela Folha de S.Paulo em 2009. Nela, conta-se que Nardes,
contrariando antiga posição sua, votou pela liberação de um aditivo de
155 milhões de reais para a Camargo Corrêa na construção da ETUC. O
ministro do Tribunal de Contas havia se declarado impedido de julgar
processos do Dnit porque seu irmão, Cajar Nardes, era nada menos que o
gerente de projetos do órgão. De verdade, o irmão e Pagot são amigos de
longa data e, em 2005, foram companheiros de secretariado no estado de
Mato Grosso. Mesmo assim, Nardes votou e avalizou o aditivo.
Outro documento, apreendido com Pietro
Francesco Giavina Bianchi, ex-vice-presidente da construtora, relaciona
valores e cita o aditivo liberado por Nardes. Ainda com Bianchi foi
encontrada uma ampla quantidade de documentos sobre doações eleitorais
da Camargo Corrêa efetuadas “por dentro e por fora”. Sobre Nardes, mais
uma anotação referente ao TCU, relacionada a uma obra do Rodoanel de São
Paulo, chamou a atenção da PF. Diz o relatório: “Não é só à Obra da
Eclusa de Tucuruí que o nome de Nardes aparece atrelado. Nardes é também
o relator do acórdão n. 2185/2007, do Plenário do TCU, em que decide
que o repasse da verba federal destinada ao Rodoanel deveria ser
liberada para o Dnit e a Dersa e, consequentemente, à Camargo Corrêa,
apesar das irregularidades apontadas pela equipe técnica do TCU”.
À época, Nardes negou ter cometido
qualquer irregularidade. Disse ter sido indicado para o TCU pelo PP por
conta de sua atuação como deputado e refutou qualquer tipo de concessão
que pudesse colocar interesses pessoais acima dos interesses do País.
Com a anulação da Operação Castelo de Areia, o episódio foi
definitivamente esquecido.
Nardes volta agora à ribalta, paparicado
pela oposição, por conta de seu relatório preliminar sobre as contas do
governo em 2014. Entre as “irregularidades” detectadas, figuram os
atrasos em repasses do Tesouro Nacional a bancos estatais, em
decorrência de despesas com benefícios sociais e previdenciários, como
Bolsa Família, Abono Salarial e Seguro Desemprego. No total, o governo
teria represado 37,5 bilhões de reais do Banco do Brasil, da Caixa
Econômica Federal e do BNDES. As instituições financeiras bancaram os
pagamentos com recursos próprios, para receber depois com juros e
correção.
No entendimento de Nardes, as manobras, usadas para ocultar
dívidas do governo, configuram operações de crédito, o que é vetado pela
Lei de Responsabilidade Fiscal desde 2001. Nas constantes declarações à
mídia, ele se refere ao procedimento como uma espécie de “cheque
especial” usado pelo governo sem respaldo legal.
A CartaCapital, o ministro Luís
Inácio Adams, da Advocacia-Geral da União, contesta a interpretação e
lembra que essa forma de efetuar o pagamento aos bancos é adotada há
pelo menos 14 anos. Também houve atrasos em repasses nos oito anos do
governo Lula e nos dois últimos de Fernando Henrique Cardoso, nem por
isso o TCU rejeitou as contas dos ex-presidentes. “Não existe qualquer
irregularidade, até porque não houve um contrato mútuo, não é uma
operação de crédito diferida no tempo, com pagamentos progressivos, e a
prova disso é que a Caixa encerrou o ano como devedora líquida da
União”, diz Adams, ao lembrar que os bancos públicos também recebem
antecipadamente valores do governo, e pagam encargos financeiros por
essa antecipação. “Quero saber que banco paga juros se eu entrar no
cheque especial. Se você descobrir isso, me fala que eu quero abrir uma
conta lá.”
O TCU concedeu 30 dias para o governo se
explicar, além de ter convocado 17 autoridades para prestar
esclarecimentos. O prazo encerra-se em 22 de julho. Arno Augustin,
secretário do Tesouro no primeiro mandato de Dilma, assumiu a
responsabilidade pelos procedimentos, embora negue qualquer
irregularidade ou ilicitude. “O Arno pode até sofrer alguma penalidade,
mas a decisão principal é da presidenta da República, conforme a
Constituição estabelece”, apressou-se a pontificar Nardes, no fim de
junho, ecoando falas de FHC e Aécio Neves.
O governo receia que a discussão técnica
descambe para uma disputa política. A preocupação é justificável. Além
do flerte de Nardes com o discurso oposicionista, a maioria dos
ministros do TCU é ligada a caciques partidários (box à pág. 26).
Trata-se de um problema antigo, fruto da forma como se dão as nomeações
no Tribunal de Contas. Das nove vagas da Corte, seis são preenchidas
com indicações do Congresso, duas são reservadas a servidores de
carreira, auditores ou procuradores, e apenas uma é de livre provimento
da Presidência da República. Nardes, para citar um caso, começou sua
militância nos anos 1970 pela Arena, a legenda da ditadura, e foi
nomeado ministro do TCU em 2005 por indicação do PP, partido que o
elegeu deputado federal em 2002.
Lideranças do DEM, PPS e Solidariedade não escondem a ansiedade em dar início a um processo de impeachment contra
Dilma no Congresso, sobretudo após o vazamento de trechos da delação do
dono da UTC, que afirmou aos investigadores da Lava Jato ter doado 7,5
milhões de reais à campanha de reeleição para não correr o risco de
perder contratos com a Petrobras. A doação foi legalmente registrada na
Justiça Eleitoral, assim como os 8,7 milhões que o empresário repassou à
campanha de Aécio Neves. Mesmo assim, a oposição deve bater à porta da
Procuradoria-Geral da República para solicitar uma investigação por
crime de extorsão contra Dilma. “Parece piada. Quando a doação é para o
PT, é propina. Quando é para o PSDB, é um gesto benemérito”, critica o
deputado petista Wadih Damous. Além da queixa na PGR, o grupo deve
cobrar do TCU uma investigação pela suposta continuidade das pedaladas
fiscais em 2015.
Por trás dessa última iniciativa há uma boa dose de
cálculo político. Irregularidades na campanha podem ensejar a cassação
do mandato apenas após o julgamento do caso pela Justiça Eleitoral. O
pedido de impeachment, por sua vez, só se justifica por crime de
responsabilidade da presidenta no exercício de seu atual mandato, avalia
Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP.
“Ainda que as contas de 2014 fossem rejeitadas pelo
Congresso, que tem a palavra final sobre o tema, isso diz respeito ao
mandato anterior. Alguns juristas até sustentam que poderia ser evocado o
princípio da continuidade administrativa. Mas se os mandatos têm
período fixo, a responsabilidade que implica sua perda também deveria
ter”, explica Serrano. “Além disso, acho pouco provável responsabilizar a
presidenta diretamente pelas ‘pedaladas’. Ela não é responsável pelas
demonstrações contábeis, isso é tarefa do corpo técnico da administração
pública. E não houve desvio de recursos ou lesão ao patrimônio
público.”
*Publicado originalmente na edição 857 de CartaCapital, com o título "Quem alveja quem?"
Nenhum comentário:
Postar um comentário